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domingo, 21 de setembro de 2008

O pacto inquebrável


Num raio de lucidez no calor da angústia, o salmista se pegou dizendo: “Este deve ser o meu problema: pensar que o Grande Deus mudou.” (Sl 77.10, bv). Atire a primeira pedra (no salmista!) quem nunca se disse tais palavras. O Altíssimo teria cochilado — se já não estaria num sono profundo, cansado de nós e dos nossos problemas. Ou talvez, como o contexto do salmo esclarece, deixado de amar o seu povo, entregando-o nas mãos dos inimigos, aguardando, impassível, a tragédia final. Ele escondeu de nós a sua face, e estamos aqui, sós e gemendo. Mas nosso problema é justamente pensar assim, seguindo as alucinações da nossa agonia.

Este deve ser o meu problema (lit., doença): posso esperar que o mal venha dos ímpios, dos bêbados, dos corruptos, dos ladrões, mas a idéia de que o Deus da aliança voltou sua destra contra os seus filhos para destrui-los é intolerável. Afinal, de que vale segui-lO, Ele que um dia nos tirou das redes, do mar e nos prometeu uma vida abundante pescando homens? Talvez nos inquiete mais, na verdade, o fato de que Deus se reserve o direito de ficar calado, sem justificar suas ações. Ater-se a essa perspectiva é a nossa enfermidade.

Temos uma visão infantil do agir de Deus: ele nos pouparia da banalidade do mal e nos conduziria sempre em meio a um prazer constante (será que é por isso que o louvor contemporâneo é tão hipocritamente “alegre” e “triunfante”?). Ora, e se alguém perder um pai num acidente, ou contrair câncer, ou perder o emprego, ou ser atingido por uma bala perdida? Quando a oliveira mentir, culparemos o Deus do pacto? Exigiremos que nos dê explicações e nos convença da justiça do seu propósito? Acordemos: a oliveira vive mentindo — e na frente dela Deus requer que aceitemos Sua vontade com resignação. Isto é a fé no sentido pleno do termo. Isto é a nossa cura.

Imagem ©: A. Lee Benett Jr, atpm.com

terça-feira, 20 de maio de 2008

Fé: uma força sintrópica

Pelos ferozes princípios ora vigentes da entropia, das leis de Murphy, da selva, de Gerson (e tantas mais quantas você puder listar na cabeça), a vida é uma espiral crescente de desagregação, futilidade e falta de sentido. Com efeito, a presente “ordem” de coisas compõe um lúgubre testemunho de até que ponto o ser humano pode degradar-se, alienado de Deus, do seu próximo e de si próprio. Isso me lembra um livro que li há muito tempo, O homem em busca de si mesmo, de Rollo May (Ed. Vozes), que já apontava o vazio como o drama do homem moderno.

As conquistas materiais abundantes desta era, a muita quantidade de oportunidades para o prazer, as batalhas sem fim por dinheiro, poder e fama — nada disso revelou-se capaz de proporcionar alguma satisfação permanente, ou um ideal de vida. As ideologias caíram por terra, dando lugar, em definitivo, a crises institucionalizadas de valores, cristalizadas e banalizantes. As filosofias tentam em vão fornecer respostas, mas a sensação geral é de que a vida vai ficando, paulatinamente, mais furada que queijo suíço. As tecnologias prometeram mais tempo livre, de qualidade, mas omitiram a parte do stress, do spam, do desemprego e do insano workaholism. Tudo que paira sobre nós é esta espiral de questões abertas num cenário absurdamente caótico, subjetivo, imprevisível e sem coesão.

O problema evidentemente não é o progresso, mas a falta de uma força que o subordine aos interesses mais elevados do homem, conferindo ordem, beleza, propósito e plena expressão às suas ações e conquistas, preenchendo os buracos do queijo de cada um, em cada lugar e em todos os aspectos da vida. Essa força, para o cristão, só pode ser o evangelho. Só pode vir de um lugar: a cruz de Cristo. Só pode agir de uma forma: pelo amor que o Senhor derramou nos corações dos crentes. Quando Ele disse: “Vós sois o sal da terra”, referiu-se ao poder transformador do seu evangelho sobre a sociedade, uma influência moral, cultural e espiritual que dá sabor à vida, como o sal à carne. O cristianismo, então, é uma fé missionária e sintrópica. Missionária porque visa a encher toda a terra do conhecimento de Cristo, destronando os bezerros de ouro e o ouro dos bezerros. Sintrópica porque se opõe à desordem, ao mal, à dor, à inimizade, à injustiça e ao engano, colando os cacos e preenchendo os furos. O resultado disso é a perfeita paz com Deus, com o próximo e com nós mesmos — uma paz de valor inestimável e efeito duradouro: a alegria e sensação inefável de que tudo vai ficando, surpreendentemente, em seu devido lugar.

terça-feira, 25 de março de 2008

Teste de fidelidade


Recentemente li um artigo no monergismo.com sobre o clássico problema do mal. Até aí tudo bem. É sobejamente conhecida a tensão entre os conceitos de um Deus onipotente e completamente bom, e a existência do mal no mundo. Como Deus pode permitir, se teria poder para impedir? perguntam os apressadinhos. Bem, naturalmente que nós, cristãos de fé reformada, não vemos nenhum paradoxo aí. A coisa é mais psicológica que lógica.

O que me comoveu nesse velho debate e abriu minha mente foi outra coisa, um aspecto da fé cristã que, de fato, eu não compreendia bem. Devo me opor à prática do mal simplesmente porque Deus assim o ordenou, ou devo submeter a ordem de Deus ao meu próprio raciocínio e julgamento? Adão e Eva falharam nesse ponto. Comer de um fruto proibido não lhes parecia errado; de fato, o conteúdo da proibição era sobre algo moralmente neutro justamente de propósito. Era essa a natureza da prova. Se não comessem do fruto, evidenciariam sua lealdade a Deus, mas resolveram ponderar a ordem, discutir a questão, racionalizar… e o resto é o triste samba desta civilização decadente e botocada.

Então esse papo de que Deus nos manda afastar-nos disso e daquilo simplesmente porque, no fundo, é venenoso, ilegal, imoral ou engorda e vai nos fazer mal é conversa fiada. Todo mandamento, no fundo, é um teste de fidelidade.

Imagem: © “Os construtores do muro: Neemias”, de Cody F. Miler

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Cristianismo de respostas


A Igreja está constatando, um tanto tardiamente, que como toda organização, banco ou indústria, deve à sociedade uma ação, ou política de ações, que traga benefícios concretos às pessoas, aperfeiçoamentos relevantes à ordem pública e contribuições positivas ao meio ambiente. O mundo, além de campo missionário, é um complexo ecológico, político, cultural e sócio-econômico. Só a Igreja pode, promovendo a glória de Deus, beneficiá-lo em todos esses aspectos.

Por onde quer que avance, o evangelho vai consertando as vidas, restaurando as famílias, amparando os aflitos, mas pode mais: os rios se tornam mais limpos, as cidades menos violentas, os balancetes mais transparentes, os empregos menos insalubres, as leis mais justas, as cadeias menos cheias, as malas de dinheiro mais vazias. “Não há um centímetro da vida do qual Cristo não diga: é meu” (Cornelius van Til). O senhorio de Cristo deve ser proclamado e vivido pelo seu povo em todos os recôncavos do existir, mesmo os mais agudos, íngremes e escondidos. Para o cristão, toda a vida é religiosa.

Guiado pela Palavra e iluminado pelo Espírito, o crente pode interpretar o mundo corretamente e posicionar-se segundo Deus, ativamente, em favor da reconstrução desse mundo. Com a mente reformada, a Igreja trará a este século perturbado os valores do alto, que, de fato, beneficiam as pessoas: uma ação social que vá além do assistencialismo; uma práxis política que descarte o fisiologismo; uma conduta ética que transforme os costumes; uma força cultural, original e vibrante, que embeleze o que lemos, cantamos, ouvimos; uma influência intelectual que submeta toda filosofia ao conhecimento de Cristo e lute contra toda forma de ignorância; e sobretudo uma grandeza espiritual que traga esperança autêntica para todos e promova a paz entre todos, de todos os lados.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Muito além dos astros passar


“Os céus manifestam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, não há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras até os confins do mundo.”
(Salmo 19.1-4)

Talvez o maior vislumbre que possamos ter de nosso Senhor e de sua glória futura seja o firmamento, que se descortina aos nossos olhos todos os dias e cuja beleza nunca é banal. O lindo céu proclama a glória, o conhecimento, a sabedoria e a bondade de Deus, diz o salmista. Que deus seria comparável ao nosso? É inaudita a sinfonia silenciosa que o universo oferece ao Criador.

Essa revelação poética de Deus nos enche de esperança, a esperança de dias melhores, pois tanta formosura e esplendor que contemplamos é certamente uma pequena amostra daquilo que ele nos reservou. Tal esperança nos purifica e nos faz ansiar pelo dia em que estaremos face a face com ele. Então todo apego às coisas daqui perde o sentido, e nossa alma só quer estar perto dele, assim como a corsa suspira pelas águas.

O encontro definitivo com Deus é o maior anseio e a maior glória do cristão; nada pode ser mais importante do que preparar-se para a eternidade. Graças ao que Cristo nos proporcionou no Calvário, temos certeza de que um dia iremos, como disse o poeta, muito além dos astros passar.

Imagem: © tripcart.typepad.com

domingo, 17 de fevereiro de 2008

O tom do nosso canto


O agir divino é hermético, fechado, secreto, um verdadeiro enigma. Não há teologia que o decifre, doutrina que o disseque, filosofia que o analise. Quando pensamos que o vento está soprando para o Norte, ele já foi para o Sul. Com sua força impenetrável, nos compele a lugares insólitos, vales profundos, rios caudalosos, montes elevados. A vontade de Deus é o mistério fundamental da vida a partir do qual se organiza a hístória de cada um.

Para quais rincões Deus nos levará? A quantas paragens Ele nos conduzirá? E até quando permitirá que peregrinemos nesta terra morta, nós, seu povo caminheiro, como artistas mambembes de um espetáculo de dor e de glória, vasos de barro contendo o que de mais excelente já se viu? Não lhe ocorre que quase morremos neste mar encapelado, circundados por essas ondas que tantas vezes arremeteram contra o barco que, no entanto, recebeu a promessa de nunca afundar?

O bom ânimo necessário é a marca do verdadeiro cristão, pois só aos eleitos é dado compreender, ainda que fracamente, o propósito dessas provas, e perseverar nelas. Certamente é preciso fé e paciência: o tempo é de Deus, e tudo se encaixa sinfonicamente em sua visão, a qual gera a forma e o tom, as notas e o andamento da nossa melodia particular, nosso breve canto.

Imagem: © jrcompton.com

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Cara e coroa

Davi e Jônatas, Rembrandt


Com um beijo de um falso companheiro o Messias foi traído e começou o seu calvário. Com um magnífico lamento o rei salmista pranteou a morte do seu grande amigo, o príncipe guerreiro, morto na batalha. Judas Iscariotes e Jônatas ben Saul, quais imagens especulares que se vêem mas se opõem, são arquétipos — modelos universais — da verdadeira e da falsa amizade. No lado de cá do espelho, temos um companheiro leal, sincero e desprendido; no de lá, um oportunista cego, covarde e desonesto. As histórias de Jônatas e de Judas são uma o reverso da outra. Ambos estão ligados a personagens messiânicos (Davi como tipo de Cristo, Cristo como antítipo de Davi); ambos tiveram fim trágico; e ambos, também, nos despertam sentimentos radicais.

Celebrado pela força e bravura, o príncipe também era um excelente arqueiro. Jônatas conheceu Davi no episódio da morte de Golias, e a amizade deles perdurou por toda a vida. Quando Saul, no princípio de sua demência, cogitou em matar Davi, o príncipe se opôs de imediato (1 Sm 19.4). À medida que o filho de Quis urdia os golpes mais baixos para eliminar o filho de Jessé, Jônatas mais e mais o protegia — nesse conflito, o príncipe brilhava e o rei se perdia. A prova cabal de amizade foi o próprio Jônatas reconhecer que Deus passara o reino a Davi e, portanto, ele, Jônatas, não herdaria o trono, contudo se alegraria em servir ao novo rei (1 Sm 23.17)! Essa alegria se desfez prematuramente na terrível batalha de Gilboa, quando caiu Saul e seus três filhos. Ainda assim, a morte de Jônatas é gloriosa.

Ao contrário dos onze apóstolos, galileus, Judas Iscariotes era da Judéia (como Jesus), o que o liga naturalmente a Judá, seu protótipo. Este vendeu o próprio irmão como escravo (Gn 37.26-27); aquele entregou seu Mestre pelo preço de um. Era ladrão e mesquinho (Jo 12.5-6) e deixou-se usar por Satã (Jo 13.27). Judas ouvira várias vezes o Senhor pregar contra o amor ao dinheiro, o fermento dos fariseus e a falta de fé, mas pecou nesses pontos. A prova maior da inimizade não foi o beijo, mas a cara-de-pau na última ceia, quando indagou: “Ó Mestre, seria eu o traidor?” Vendo o Filho do Homem preso e condenado, caído em si de remorsos, enforcou-se. Sua vida foi vergonhosa; sua morte maldita.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Lágrimas em poemas

O louvor é a linguagem dos peregrinos, dos esperançosos, dos sofridos, dos intrépidos, dos mansos, dos pacificadores, dos mártires, dos contritos, dos misericordiosos, dos puros e de todos os que têm fome e sede de justiça.

Quando Horatio Gates Spafford (1828—1888) recebeu de sua adorada esposa Ana o conciso telegrama com as palavras “salva sozinha” — pois todas as suas quatro filhas tinham perecido na colisão do S. S. Ville du Havre com outra embarcação em pleno Atlântico, em 1873 — seu coração quase se espatifou de tristeza. Mas, passando de navio por perto do local da fatalidade algumas semanas depois, escreveu a letra da que se tornaria uma canção imortal: It is well with my soul (a conhecida Sou feliz com Jesus, nº 398 do Cantor Cristão):

Se paz a mais doce me deres gozar
Se dor a mais forte sofrer
Oh seja o que for, tu me fazes saber
Que feliz com Jesus sempre sou!

Detendo-se um pouco o olhar neste homem, podemos contemplar em sua tragédia um quê de belo: o conforto amoroso, o carinho benevolente, o sorriso calado do Pai de toda consolação.

Por maior que seja o pesar, o Senhor concede aos seus filhos toda força para transformar mal em bem, lágrimas em poemas, perda em superação. O choro de Spafford se converteu numa bela sinfonia de amor, cujas notas têm tocado gerações de cristãos por mais de um século. Daqui a cem anos, se Cristo Jesus não tiver voltado, os crentes de lá ainda se lembrarão de que Deus consolou o coração de um pai, e O glorificarão por isso.


© Imagem e mais sobre Spafford aqui.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Vestígios do dia



A narrativa do dilúvio (Gênesis 6) é um eloqüente testemunho da severidade divina com o pecado. Deus ceifou toda a humanidade de uma era, salvando apenas oito pessoas — a família de um respeitável senhor de 600 anos! O Dilúvio subverteu as expectativas: a velhice é mais vantajosa que a juventude; a maioria é sacrificada e a minoria poupada; e a própria Terra passa de abrigo ao matadouro da raça humana. A graça comum foi suspensa e só restou a tragédia coletiva, esmagadora e inescapável. Há lições valiosas a aprender desse grave memorial.

1. Deus preferiu velhos a jovens para recomeçar. O idoso Noé passara os seus últimos cem anos construindo a arca e pregando às pessoas que, no entanto, queriam comer e beber, enfim, viver a vida intensamente. Porém Deus desprezou o vigor daquela geração, escolhendo a fé, a integridade e a obediência de um patriarca, ainda que (por nós) considerado muito velho para encabeçar a recolonização da terra.

2. Deus fez justiça quando tudo parecia perdido e manifestou juízo quando tudo parecia tranqüilo. A beleza e esplendor daquele mundo ensejava a ilusão de que Deus estava longe demais para combater toda aquela imoralidade violenta. A pregação de Noé foi o libelo da justiça, do acerto de contas iminente, abertamente rejeitado. Então Deus fechou a porta, pondo fim à impunidade e selando o destino de todos — o que é advertência e conforto para nós.

3. Poupando um remanescente, Deus trouxe-nos esperança. Quando a chuva interrompeu a alegria da última festa e as águas diluíram o vinho da derradeira garrafa, as pessoas se deram conta do fim, mas já era tarde, pois a arca flutuava. O juízo divino engolfava homens e animais, destruindo suas vidas perdidas. Dentro da arca, Noé e os seus eram tudo com que Deus contaria a partir dali. Poupados pela graça divina, enfrentariam o dilúvio e uma terra desfigurada, agora hostil. Noé compreendeu o chamado, pelo que ao sair da arca ofertou a Deus um holocausto. E o mais belo arco-íris rasgou o céu. Noé olhou e sorriu: quem anda com Deus pode aguardar melhores dias.